Por Felipe Siles
Segundo o dicionário informal:
Situação onde a pessoa se encontra sem uma saída. É uma analogia ao jogo de sinuca quando o jogador tem a bola da vez protegida atrás de outras bolas de forma que fica impedido de acertá-la. Ainda por cima, o jogo está numa condição onde a bola errada pode facilmente ser encaçapada.
Estou numa sinuca de bico. Estou descontente com a minha mulher, mas também não tenho nada melhor em vista.
Quem viveu intensamente a internet dos anos 2000 acompanhou o processo de revolução na distribuição musical, o mp3, um formato compacto de áudio que facilitava a circulação de arquivos em uma internet ainda muito precária em termos de velocidade. Logo foram surgindo diversos programas para baixar o mp3: Napstar, Kazaa, Emule, Soulseek (meu preferido), Grooveshark, entre muitos outros. Além disso proliferaram blogues onde era possível baixar álbuns e discografias, alguns deles com uma curadoria incrível, como o Um que tenha, que era popular no Brasil, além de comunidades de compartilhamento no Orkut.
Essa facilidade no acesso a música praticamente do mundo inteiro forçou uma lenta, porém radical mudança na lógica da indústria musical. De cara, veio a discussão ética em torno do tema da pirataria, que inclusive rendeu um divertido episódio de South Park onde o FBI invadia a casa das pessoas que baixavam músicas de graça na internet (infelizmente não me lembro que episódio foi esse, se souber, entre em contato conosco). Esse episódio retrata um pouco do zeitgeist (espírito do tempo) desse período, e mostra como essa discussão estava presente no cotidiano. Não vou entrar aqui no mérito dessa discussão ética, mas já adianto que a música Copiar não é roubar sintetiza muito do que eu penso a respeito do tema.
Mas voltando à adaptação da indústria musical a esse novo cenário de distribuição, depois de uma longa crise de gravadoras, o capital tomou novamente as rédeas através do modelo de streaming, que se provou bem sucedido em plataformas como a Netflix. Criou-se então a Netflix da música, o monopólio do Spotify, onde a lógica e até o ambiente não é tão diferente assim de programas como o Napster. Você tem uma barra de busca, pode procurar e baixar músicas do seu artista preferido, sem a culpa de supostamente prejudicá-lo com a pirataria. Tudo isso por uma módica mensalidade que não vai ocupar muito espaço na sua fatura do cartão de crédito, e até capaz que você esqueça aquela mensalidade ali no débito automático, mesmo nos meses que não utilizar o serviço.
Tudo ótimo para a indústria da música, que se reorganizou num cenário adverso de pirataria e distribuição livre de música. A construção desse monopólio do Spotify foi sendo acompanhada da patrulha anti-pirataria na internet, vai sendo cada vez mais difícil para o usuário comum encontrar mp3 para baixar apenas fazendo pesquisas no seu buscador preferido. E o cerco foi fazendo com que esses downloads possam cair em domínios não muito seguros, que podem instalar vírus no seu computador, pegar dados seus, minerar bitcoins ou até coisa pior. Fora que o usuário comum foi sendo afastado do ambiente do computador e a inclusão digital de uma quantidade homérica de usuários foi feita pelo celular, pelo sistema operacional Android, onde impera a lógica de aplicativos e existe pouca navegação pela internet via navegadores.
Para o consumidor a solução acabou sendo bem OK. O usuário médio não possui mais aquela gama praticamente infinita de mp3 gratuitas para baixar, mas o catálogo do Spotify é bastante parrudo e ele vai encontrar praticamente tudo aquilo que ele gosta, já que seu gosto é mediado pela publicidade e redes sociais, que certamente não vão moldar esse gosto para terras que não estejam no Spotify. O preço módico vai quebrando aquela ideia comum nos anos 2000 de que as pessoas não estavam dispostas a pagar por serviços online. Hoje em dia elas não só pagam, como colecionam várias dessas mensalidades, às vezes até sem perceber, muitas vezes esquecem que assinam alguns serviços. E as camadas mais populares acabam consumindo o serviço com as propagandas mesmo, a publicidade, que acaba fazendo parte de sua paisagem sonora de tal forma que elas nem a notam mais no campo consciente.
Para o artista mainstream acabou sendo bom também, o custo de produção foi diminuindo já que a base estética da música pop contemporânea vem do hip hop com sua cultura de sample. Não vou entrar no juízo de valor a respeito disso, mas é fato de que essa lógica é bem conveniente para a indústria, já que o grupo musical (e o cachê dos músicos) acabou se concentrando na figura do produtor musical, que vai manipular samples para construir as bases das músicas de novos artistas. Dessa forma se consolida na indústria musical o processo da substituição do trabalhador de fábrica (o músico instrumentista) pelo self made man (o produtor), o profissional alinhado com o neo liberalismo contemporâneo. O álbum ou single no Spotify, nesse contexto, tem o mesmo objetivo do perfil no Instagram, publicidade para seus shows e turnês milionárias pelo mundo, que é onde tais artistas do mainstream realmente vão ganhar dinheiro. Além disso a construção dessa produção no Spotify e Instagram vão moldando uma espécie de soft power do artista mainstream, e formando um imaginário cultural da época, um zeitgeist que vai direcionar a subjetividade das pessoas, inclusive de pessoas poderosas.
Para o artista independente, esse cenário é uma verdadeira tragédia. A chance dele chegar no mainstream é muito parecida com a possibilidade do vendedor de amendoim do trem virar o Elon Musk. Mas a promessa de que se o artista independente alimentar o Spotify, as redes sociais, o tal do sucesso virá, e ele poderá viver daquilo que ama, de sua obra musical. Essa promessa nunca é cumprida, e o artista se torna um escravo do Spotify e Instagram, trabalhando de graça para essas plataformas, ou até pagando pra trabalhar, já que produzir para elas implica em custos, nem que o custo seja ter um bom celular. Sem sombra de dúvidas, o artista independente é o maior prejudicado no novo cenário da indústria musical pós-pirataria. Tenho a impressão de que ele serviu como laboratório para todo o cenário de precarização que depois se consolidou com plataformas como a Uber e o iFood, que atingiu massivamente a classe trabalhadora no Brasil e no mundo. Além disso, o consumo se direcionou para a extinção do CD, que ainda rendia algum lucro modesto para o artista, vendendo a mídia no show e para amigos e familiares.
Pelo que tenho observado, resta ao artista independente duas soluções, que podem (e costumam) inclusive se somar:
- Procurar o seu sustento em outras atividades vinculadas ou não à música (dar aulas, compor jingles de publicidade, tocar em grupos de música mais comercial, bolsa de pesquisa, etc) para financiar a própria obra;
- Financiar a sua produção artística por leis de incentivo.
A primeira solução não contempla a produção da obra como profissão e num cenário de trabalho intermitente (onde o trabalho invade nosso espaço privado chegando embalado pelo Whatsapp no mesmo ambiente que as mensagens que a sua tia te manda), fica difícil e sacrificante para o artista independente manter a sua produção. Muitos inclusive, nesse processo, sacrificam o próprio lazer e descanso, o que é péssimo em termos de qualidade de vida e saúde mental.
A segunda solução me parece muito boa, mas sempre vai depender dos humores da política institucional, além do posicionamento ideológico de quem ocupa seus cargos. Os editais e leis de incentivo viveram um período de vacas magras desde o Golpe em 2016, a partir do governo Michel Temer, que acabou com o Ministério da Cultura e que apenas agora parece estar renascendo no Governo Lula, em 2024. Resta saber até quando… Além disso, o formato de edital não contempla a ideia do artista enquanto profissão, não existe algo que ajude a fomentar uma produção mais sólida de longo prazo. Fora que o formato do edital cria uma concorrência que pode ser bem ruim para os músicos enquanto categoria, gerando inclusive ressentimentos entre pessoas não contempladas. A solução do edital é o famoso “melhor isso do que nada”, mas está longe de ser o ideal. É uma solução restrita a um perfil específico de artista, normalmente com boa formação intelectual e de classe média, com capacidade para formular projetos, ou recursos financeiros suficientes para tercerizar a tarefa.
A motivação para escrever esse texto foi justamente uma discussão dentro do nosso coletivo de Audio e Software Livre sobre alternativas ao Spotify para artistas independentes dentro do nosso escopo que é o software livre e de código aberto. Surgiram algumas ideias muito boas inclusive, como por exemplo o desenvolvimento de uma plataforma pública, que distibuísse a música de artistas contemplados em editais. Falou-se em plataformas federadas, como o Funkwhale. Falou-se também no Jamendo, que é uma plataforma que ajuda o artista a distribuir e licenciar a própria obra. Surgiram ótimas ideias e sugestões. Eu, pessoalmente, ainda sinto a falta de uma plataforma que integre o player e o crowfunding e que ajude a criar a cultura do fã contribuir financeiramente com o artista independente, mais ou menos nos moldes do Bandcamp (antes de ser canibalizado por essa indústria musical) ou a plataforma de podcasts Orelo.
Mas infelizmente nenhuma dessas soluções resolve a vida do artista independente em seus problemas cruciais. A solução para isso, ao meu ver, é superar o capitalismo. Enquanto isso não acontece, continuamos na sinuca de bico e o músico independente produzindo do jeito que dá e com saudades das caixas de CDs que entulhavam a sua casa.